Artigo produzido pelo advogado Alfredo Ribeiro da Cunha Lobo*, sócio deste escritório, e publicado, originalmente, no site Conjur
A Regularização Fundiária Urbana (Reurb), instituída pela Lei nº 13.465/2017, representa um avanço inédito para a garantia de segurança jurídica dos ocupantes de imóveis irregulares no Brasil, bem como para o cumprimento do direito fundamental à moradia, assegurado pela Constituição Federal de 1988. Mesmo assim, o país enfrenta grandes desafios nessa área.
O Brasil tem déficit habitacional de 6 milhões de unidades, além de 16 milhões de pessoas morando nas mais de 11 mil favelas existentes no país. De acordo com o Censo 2022, mais de 236 mil pessoas vivem nas ruas das cidades brasileiras. Além disso, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que existem, em todo o país, mais de 5 milhões de moradias irregulares.
O cenário que antecedia a Reurb era conduzido por um emaranhado nada sistêmico de normas e dispositivos legais que muito debilmente contribuía para a melhoria daquilo a que se propunha. Contudo, em que pese se tratar de um novo, unificado e evidentemente aprimorado modelo para o trato da problemática em questão, a Reurb carece e depende consideravelmente de outras medidas, contextos e atitudes, políticas e sociais, para se tornar efetivamente exequível e também eficaz.
Antes de entrar especificamente nos pontos que precisam ser abordados nesse sentido, relevante voltarmos ao que havia na fase que antecedeu a Reurb. Dessa forma, poderemos melhor analisar a lamentável e preocupante trajetória da política habitacional no Brasil e, a partir daí, talvez, lançar ainda mais luzes sobre o debate e, especificamente, sobre o que deve ser discutido e implementado de forma a garantir o máximo possível de êxito na execução da Reurb.
No início dos anos 1940, o Brasil adentrava definitivamente e de forma acelerada no processo de industrialização e, por consequência, de urbanização. Consideradas a desigualdade social e a notória escassez de recursos da grande maioria da população, tal cenário resultou no crescimento exponencial de assentamentos urbanos irregulares. Esse estado de coisas foi o que tornou imprescindível a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 3.365/1941, que ficou conhecido como a “Lei de Desapropriação”.
Esse primeiro instrumento normativo, no entanto, provou-se ineficaz. Isto porque estabelecia a legitimação da posse dos assentamentos urbanos irregulares – nos casos em que fosse comprovada a ocupação do imóvel por ao menos cinco anos – sem considerar o nível de complexidade e burocracia do processo para conferência de título de propriedade.
Na esteira da Lei de Desapropriação, a Lei nº 6.015/1973 instituiu o Sistema Nacional de Registro de Imóveis, que alcançou melhores resultados ao promover a regularização fundiária pela via da usucapião especial urbano. É de se reconhecer que, ao lançar mão desse instituto legal, o país conseguiu reduzir o déficit habitacional. A partir dele, os assentados que comprovassem posse de áreas de até 250 metros quadrados pelo período mínimo de cinco anos conseguiam o registro de titularidade do imóvel.
Infelizmente, contudo, a exemplo do que ocorreu com a Lei de Desapropriação, também o Sistema Nacional de Registro de Imóveis e, mais especificamente, a usucapião especial urbana lidam com procedimentos complexos e burocráticos.
Conhecida como “MP do Solo Criado”, a Medida Provisória nº 2220/2001 foi posteriormente convertida na Lei nº 10.932/2004, cujo regramento concede o direito real de uso para fins de financiamento de projetos de regularização fundiária. A inovação foi fundamental, já que, desta forma, possibilitou que os municípios vendessem às pessoas e entidades ligadas à construção civil o potencial construtivo que a regularização fundiária evidentemente fomentou.
No mesmo ano, entrou em vigor a Lei nº 10.257/2001, o “Estatuto da Cidade”, que integrou os preceitos contidos nas normas legislativas anteriores e, assim, estabeleceu a possibilidade de regularização fundiária por meio de procedimentos diversos, mas, essencialmente, a legitimação de posse, a usucapião especial urbana e a concessão de direito real de uso.
Outro efeito direto, importantíssimo e positivo da nova lei foi que, dessa forma, ensejou avanços para o desenvolvimento urbano sustentável, com notável priorização da participação da sociedade na gestão urbana e do interesse público.
Ainda em 2001, também foi editada a Lei nº 10.188/2001, que criou o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que basicamente permitiu que famílias de baixa renda alugassem residências por prazo determinado, ao final do qual poderiam adquiri-las. Entretanto, também essa iniciativa não alcançou muito sucesso, conforme levantamento divulgado em 2005 pelo governo federal, que apontou baixo nível de candidatura ao programa pelas famílias às quais se destinava a atender.
Finalmente, em 2009, entrou em vigor aquele que, segundo documento publicado pelo Ministério da Economia (ME) em 2020, viria a ser o maior e mais bem-sucedido programa habitacional da história do país até então: o Programa Minha Casa, Minha Vida, instituído pela Lei nº 11.977/2009. De acordo com dados da pasta, por meio dele, mais de 4,5 milhões de famílias adquiriram suas casas e mais de 2,6 milhões de imóveis foram regularizados. Mesmo assim, tamanho avanço não conseguiu extinguir totalmente o déficit habitacional no país, o que tornou necessária, anos depois, a Lei de Reurb.
Reurb
Elaborada numa engenharia que somou os aspectos positivos e negativos experimentados nas normas e dispositivos legais que a antecederam com diversas análises, de forma a reestruturar um novo modelo de regramento, que pudesse funcionar com mais abrangência e menos lacunas, a Reurb surgiu apresentando um grande leque de possibilidades para a regularização urbana no Brasil.
Em seu artigo 15, a nova lei criou instrumentos com o objetivo específico de garantir a segurança jurídica à posse de imóveis urbanos, com a emissão de títulos de propriedade; manteve a usucapião, estabeleceu medidas de desapropriação em favor dos possuidores, o que permite a transferência da propriedade de imóveis urbanos a seus ocupantes, via pagamento de indenização ou até mesmo gratuitamente, em casos de núcleos urbanos de baixa renda.
Também abarcou a chamada “arrecadação de bem vago”, que consiste na transferência da propriedade de imóveis urbanos que não possuem dono conhecido, e o consórcio imobiliário, que constitui importante ferramenta de regularização fundiária de empreendimentos imobiliários.
Ainda entre os instrumentos previstos na Reurb está a “desapropriação por interesse social” que, como o próprio nome indica, estabelece a regularização fundiária de imóveis urbanos que se revelem indispensáveis para a implantação de projetos de interesse social. Igualmente, o direito de preempção, que confere preferência ao poder público para aquisição de imóveis urbanos localizados em áreas de interesse social.
Outros mecanismos criados com o mesmo intuito pela Reurb preveem a transferência do direito de construir, nos casos em que proprietários de imóveis urbanos sofrerem prejuízo em virtude de regularização fundiária, de modo a compensá-los por isso. Também a tomada de posse de imóveis urbanos em caso de perigo público iminente, a intervenção da administração pública em parcelamentos clandestinos ou irregulares, a transferência de imóveis do poder público para seus ocupantes e a concessão de “uso especial” para permitir a utilização de imóveis urbanos para fins de moradia.
São estabelecidos também pelo artigo 15 da citada lei a concessão de direito real de uso, a doação e o instituto de compra e venda. Embora esses dois últimos já fizessem parte da ordenação jurídica brasileira para permitir iniciativas municipais de regularização fundiária, é de se destacar que não eram, até então, previstos em lei federal. Por fim, a Reurb inovou bastante ao estabelecer, também, a legitimação fundiária, o direito de laje, o condomínio de lotes e o condomínio urbano simples.
No entanto, mais uma vez, mesmo configurando uma novidade importantíssima para o enfrentamento das questões relacionadas ao déficit habitacional no país, a Reurb enfrenta múltiplos percalços e limitações que persistem e entravam de forma bastante acentuada a efetivação do direito fundamental à moradia. A começar pela desigualdade social, altíssimo nível de concentração de renda sob o poder de uma minoria que tem, por contraponto, uma maioria que, desprovida de recursos, se vê obrigada a ocupar áreas públicas ou privadas de forma irregular, muitas das quais inaptas à habitação.
Também há de se destacar as políticas habitacionais inadequadas e a especulação imobiliária. Quando áreas nas quais comunidades se assentam de forma irregular tornam-se mais valorizadas, passam a figurar como objeto de desejo dos especuladores imobiliários, o que faz com que a pressão pela expulsão dos assentados aumente drasticamente e se efetive, na maior parte das vezes.
Novamente, ainda há o excesso de burocracia, além de uma forte resistência de alguns segmentos sociais e institucionais para a efetiva implementação da nova legislação, recursos financeiros limitados e ausência de distribuição justa dos benefícios.
Um aprofundado estudo sobre tal cenário sugere, como medidas concretas a serem adotadas, e de forma sistêmica, um extenso esforço para a conscientização pública acerca da problemática habitacional no Brasil. O objetivo deve ser o aprimoramento da coordenação entre os atores envolvidos no processo de regularização fundiária urbana e aumento de recursos financeiros especificamente voltados para a erradicação do déficit habitacional em nosso país.
*Alfredo Ribeiro da Cunha Lobo é advogado, sócio do escritório Miranda Lima & Lobo Advogados e membro da Comissão Especial de Advocacia Municipalista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e das Comissões de Regularização Fundiária e de Direito Imobiliário da OAB-DF.
Fonte: Conjur